A criança está com 40 graus de febre. A mãe está desesperada, mas a cidade não tem médico. Para onde vão? Essa cena é comum para a vendedora Juliana Santos, 30 anos, que trabalha em uma farmácia em Cristópolis, Oeste baiano. “A gente vê o desespero da família quando uma criança está tendo convulsão, ou do filho que vê o pai sentindo dor”, conta Juliana.Cristópolis é uma das nove cidades da Bahia onde não há médicos, segundo o Cadastro Nacional dos Estabelecimentos Médicos (Cnes). Até o final de maio, 100 municípios do estado tinham um índice de até 0,2 médico para cada mil pessoas (ou 1 para cada 5 mil). Este é o mesmo índice do Afeganistão.
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O país do Oriente Médio está em guerra há 12 anos e tem um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de 0,398, ocupando o 172º lugar no ranking do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). Já o Brasil, o 84º lugar, tem IDH de 0,718. Sem guerra, mas vulneráveis, os 13.280 moradores de Cristópolis apelam para o que têm: vale procurar até os funcionários da farmácia.“Se for febre, a gente vê o peso e dá as gotas de dipirona (sódica). A gente ajuda como pode, para não colocar em risco a vida da pessoa”, explicou Juliana. Mas se a ajuda e a experiência não forem suficientes é preciso encarar uma viagem de quase uma hora até Barreiras. O CORREIO procurou a Secretaria da Saúde de Cristópolis, mas ninguém atendeu as ligações.
Desequilíbrio - Enquanto cidades como Cristópolis não têm nenhum, Salvador e Região Metropolitana contam com 1,3 médico para cada mil habitantes - ou 1 para 750 pessoas. Na Bahia, a taxa é de 1,09 médicos por mil pessoas, inferior ao índice nacional: 1,8, de acordo com o Ministério da Saúde (MS). E mesmo o quadro nacional é considerado insuficiente, segundo o secretário estadual de Saúde, Jorge Solla. “O déficit é geral, porque aumentaram os postos de trabalho. Só na Bahia, temos 2.750 equipes do Programa Saúde da Família (PSF), por exemplo”. A meta da presidente Dilma Rousseff é atingir 2,7 médicos para cada mil habitantes, como no Reino Unido, que tem um sistema de assistência parecido com o brasileiro. Mas, para isso, seriam necessários 168.424 novos médicos. O plano da União para diminuir a desigualdade na distribuição é contratar médicos estrangeiros que atendam exclusivamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
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A ideia é que sejam trazidos profissionais de países como Portugal e Espanha, para trabalhar em áreas onde faltam médicos. No entanto, ainda não há previsão para a chegada dos médicos, nem por quanto tempo ficariam no país, segundo a assessoria do Ministério da Saúde. A estratégia do governo para que os estrangeiros não abandonem os postos de trabalho é que eles não terão seus diplomas revalidados, como ocorre, por exemplo, com brasileiros que cursam Medicina no exterior. Do contrário, poderiam deixar a área para a qual foram direcionados e trabalhar em qualquer lugar.Segundo o secretário Jorge Solla, novas vagas nas graduações têm sido criadas para suprir a demanda, bem como nas residências médicas. “A Bahia tem mais de mil vagas em residências médicas. Isso supera o número de egressos dos cursos de Medicina”, diz.
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Ainda assim, ele avalia que os estrangeiros são necessários. “É uma medida emergencial, para os postos que os brasileiros não quiserem. Isso vai trazer assistência para uma população excluída”. O professor de Medicina da Ufba e presidente da Associação Baiana de Medicina de Família e Comunidade, Leandro Barreto, acredita que a proposta vai ajudar na distribuição dos médicos.“Sou a favor, enquanto provisório. Precisamos de mais médicos, mas se esperarmos por novos médicos brasileiros demoraremos 20 anos para chegar ao nível de países como o Reino Unido”. Segundo o Ministério da Saúde, na Inglaterra, 37% dos médicos se formaram em outros países. No Brasil, apenas 1,79% dos profissionais fizeram a graduação fora.
Crítica - O também professor de Medicina da Ufba José Tavares-Neto alerta para os riscos da iniciativa. “Já coordenei um projeto com médicos cubanos no Acre e classifico como desastroso”. Segundo ele, os médicos tiveram dificuldade com a adaptação. “Temos jovens que querem investir no trabalho, mas o governo quer resolver contratando gente de fora, que não sabe a língua”. Também contrário à medida, o presidente do Cremeb, José Abelardo de Meneses, afirma que o programa pode dificultar a assistência no interior. “Não somos contra a vinda de estrangeiros, mas contra profissionais sem revalidação do diploma. Nós estamos preocupados com a qualidade”. Um caminho a ser tomado, para Meneses, seria a implantação de políticas de atração e fixação dos médicos no interior, passando pelo investimento em equipamentos. “Hoje, não dá para fazer medicina com estetoscópio e termômetro”, concluiu.
Mesmo com altos salários, cidades ficam sem médicosPara atrair médicos para o interior, muitos municípios oferecem altos salários, além de convênios com o Ministério da Saúde (MS). Em 2011, o governo federal lançou o Programa de Valorização dos Profissionais na Atenção Básica (Provab), que estimula a ida de profissionais para locais onde há carência de médicos. Com o Provab, o médico tem 12 meses para fazer um curso de pós-graduação prático-teórico em saúde da família, com uma bolsa de R$ 8 mil por mês. No entanto, segundo o MS, quase 80% das 1.942 vagas para médicos solicitadas pelas cidades baianas entre janeiro e maio deste ano não foram ocupadas. Em Mirante, no Sudoeste do estado, o secretário de Saúde, Wagner Ramos, conta que, das quatro vagas solicitadas, só uma foi preenchida. Além disso, o município está com uma vaga para médico do Programa de Saúde da Família (PSF) aberta há dois meses com um salário de R$ 13.200. “E esse valor é apenas para 32 horas por semana, porque não temos conseguido ninguém que fique 40 horas. A maioria dos médicos não quer se fixar em uma única cidade, mesmo pagando bem e sem atraso”, conta Ramos. Alguns municípios chegam a oferecer salários de até R$ 20 mil reais, segundo o presidente do Conselho Regional de Medicina, José Abelardo de Meneses. “O problema é que, por trás disso, muitas vezes existe uma realidade que a população desconhece. Os prefeitos não cumprem, não assinam contrato”, diz.
Mais de 600 profissionais com registro na Bahia se graduaram foraAtualmente, 622 médicos que se formaram fora do Brasil e revalidaram seus diplomas estão inscritos no Conselho Regional de Medicina da Bahia (Cremeb). Esse número, porém, não inclui apenas estrangeiros. Há também brasileiros que fizeram a graduação no exterior. Um dos que fazem parte do grupo de estrangeiros é o diretor administrativo da Associação Bahiana de Medicina e Comunidade, Walberto Herrera, 58 anos. Colombiano, Herrera chegou ao Brasil em 2001, para participar de um projeto filantrópico. “No início, não tinha intenção de ficar aqui, mas fui me empolgando e aprendendo outras coisas”, contou. Ele diz que não teve grandes problemas de adaptação, apesar de nem saber falar português quando chegou. “Nós trabalhamos com comunidades de baixa renda e acho que isso ajuda na adaptação”, diz Herrera, que também é professor do curso de Medicina da FTC.